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Zeca Bahia: “A última vez que me vi foi ontem”

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Por: C. Félix

“Eu acho que compositor tem que ser eclético e, se ele for eclético, é versátil. Minhas composições podem ser qualquer coisa: um forró, um jingle… o importante é fazer bem feito”, afirma

“Eu acho que compositor tem que ser eclético e, se ele for eclético, é versátil. Minhas composições podem ser qualquer coisa: um forró, um jingle… o importante é fazer bem feito”, afirma

A idade fica por conta do freguês. O calendário diz que são 63 anos de vida, ele diz que são 600. Sua relação com o tempo pertence a outra lógica, seus sentimentos são profundos. Em uma de suas composições, declara: “um dia desses a gente quebra o zumbir dos relógios e acerta os ponteiros. Porque ainda resta o amor, a poesia, a rima capenga e a cachaça”. Não à toa, o título do próximo disco do lapense Zeca Bahia é “O tempo e o destino”. Ele tem 286 canções gravadas. Uma delas, “Porto solidão”, foi sucesso em todo Brasil na voz de Jessé em 1980 e virou sua “aposentadoria eterna”. “Até hoje eu recebo royalties dessa música!”.

Há pouco mais de 20 anos Zeca voltou a morar em Bom Jesus da Lapa e divide seu tempo entre o expediente diário na prefeitura, os eventuais shows e a boemia. A vida de artista entre os anos 1970 e 1980 não lhe rendeu riquezas, mas o suficiente. Não se considera pobre nem rico, apenas capaz de resolver seus problemas e, quando possível, dos outros.

“Sou muito feliz, porque o dia de amanhã passou ontem lá em casa, e me falou que eu esqueci de colocar o futuro na geladeira e ficou passado. E a última vez que eu me vi foi ontem, mas eu fiquei presente esperando o passado passar pra me dizer boa noite”, diz, como se fosse expectador do tempo.

Seu novo disco deve ser lançado em breve, mas não tem data marcada. O que é certo – não se tem dúvidas disso! – é que em qualquer show que faça, mesmo para divulgar um novo trabalho, “Porto solidão” estará presente no repertório. Ela foi gravada em 43 países, segundo Zeca, mas a gravação com Altemar Dutra foi uma das mais especiais. “Foi a realização de um sonho. Eu era muito fã dele”.

Ano passado “Porto solidão” foi regravada pela enésima vez, por Raimundo Fagner, e tema da novela Máscaras, da Rede Record. “Essa música foi feita em 1979, em Vila Mariana, São Paulo. Ginko escreveu um poema e me mostrou. Eu falei pra ele ler e fui fazendo a letra e a metria da música. Quando eu terminei, que eu peguei o violão e cantei o pessoal aplaudiu e todas as lâmpadas de dentro do boteco explodiram”, recorda, explicando que foi um momento especial, mediúnico. “Seria egoísmo pensar que somos donos da vida e esquecer a espiritualidade”.

Veja o vídeo com a música Porto Solidão na voz de Jessé, seu primeiro intérprete:

José Ramos Santos nasceu em 19 de março de 1950, na Praça do Livro, em Bom Jesus da Lapa. Descobriu que tinha dom para compor aos 10 anos. “Aprendi a tocar violão em uma semana, com Wilson Cai Cai, um craque do futebol. Ele me ensinou os tons com maior boa vontade. Depois de uma semana mandou eu me virar. Foi uma figura muito importante na minha vida. Aos 14 anos compus minha primeira música: ‘Guerra do samba’. Depois, fui criando outras”.

Ao lado de Orlando Fraga, Dr. Nilzo e Evandro Brandão, Zeca fundou a banda ‘Os Terríveis”. Foi um sucesso no Oeste e Sudoeste baianos. Partiu para Belo Horizonte, Brasília e São Paulo, mas não sobreviveu só de música. Trabalhou na Abril Cultural, Folha de S. Paulo; foi revisor de livro jurídico, de poesia, romance. Entrou em jornalismo, mas não concluiu o curso. “A música me tirou desse caminho e me botou no caminho que eu vivo até hoje, de cantor e compositor”, diz Zeca, que prefere não classificar sua produção artística: “Eu acho que compositor tem que ser eclético e, se ele for eclético, é versátil. Minhas composições podem ser qualquer coisa: um forró, um jingle… o importante é fazer bem feito”.

Zeca tem cinco filhos de dez casamentos – dois deles são adotivos. Não tem remorso das separações. “Fui feliz 10 vezes. Só não deu certo. Não é culpa das mulheres e nem minha. Nós estamos no palco da vida e vivemos em órbita. As coisas mudam, os ciclos mudam, tudo muda…”. Revela um amor imensurável pelos filhos e os dois netos, mas não os ver com frequência.

“Eu fui fazer um show em Salvador e tinha 25 anos que eu não via minha filha Joana. Marquei de encontrar ela na praia do Forte. Fui eu e Vanderlino, meu percursionista. Foi ótimo, maravilhoso. Eu fiquei maravilhado com esse reencontro. Na volta, Vanderlino veio dirigindo e eu vim escrevendo sobre o amor pela minha filha: ‘O amor não está no papel, está no céu da boca da sua bondade. O amor tá no sangue e se expande em busca de carinho. O amor é uma criança que nunca perdeu a esperança de virar passarinho. E passarinhos que somos de asas abertas para o vendo, voa na saudade e nas lembranças do tempo. Alça um voo fulminante numa velocidade incandescente, transcende a órbita esse amor que voa, voa, voa, mas nunca sai do pensamento da gente’”, declama emocionado.

Às tardes, depois do expediente, Zeca passeia pelos bares da Lapa e se recolhe em um sobrado perto da rua da Lagoa. Dois pequenos cachorros são sua companhia. Alguns amigos, a exemplo do parceiro e compositor Ronaldo Maciel, frequentam sua cozinha, centro de criação, debates e celebrações. E quando o assunto é a atenção que a mídia dá para certos produtos culturais, Zeca fica indignado.

“Que diabos é ‘Leco, leco, leco, leco’? A mídia hoje é imediatista e acha uma maravilha veicular o que é ruim porque ganha dinheiro com isso. São criminosos com relação à cultura”. Mas a ditadura da mídia não é de hoje, esclarece Zeca. Ele lembra que o Festival MPB Shell da Rede Globo de 1980, que premiou Jessé com “Porto Solidão”, era aberto para todo o Brasil. Mas na prática só eram inscritas músicas de gravadoras. “Se o jabaculê era grande naquela época, imagina hoje que o dinheiro manda mais do que tudo”.

A falta de força e de mobilização cultural na região o preocupa. “Acontece algum show cultural em Barreiras? Não! A gente precisa fomentar essa cultura. Os artistas da nossa região são muito competentes e ninguém dá valor. Os políticos jogam o dinheiro fora, pagam 80 mil numa banda vagabunda, mas não pagam mil reais para um artista sério da região deles. Isso tem que mudar! É uma retrocidade cultural”, desabafa com uma voz que parece ter saído do disco de Bob Dylan, como a querer levantar a âncora do porto de solidão.

Fonte: Revista A

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